quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Contos do Farrazine


Nós tínhamos uma música.

Não que fosse exatamente nossa, decidida de forma democrática e de comum acordo, ou que tivesse alguma razão óbvia pra ser a nossa música, como o fato de, sei lá, termos nos conhecido ao som dela, termos dado nosso primeiro beijo quando ela tocava ou termos dançado pela primeira vez enquanto ela rolava numa pista vazia na madrugada de uma boate em algum lugar (mesmo porque eu não sei dançar). Era só uma música que me fazia pensar nela, acho que sem muita lógica ou razão, tanto que eu nunca me dei ao trabalho de comentar com ela que “tínhamos uma música”, já que achava que os apelidos carinhosos já eram clichê o bastante. Não que eu seja um cara de colocar limites, mas ser chamado por nome de bichinho sempre soa como "o bastante".

E nós continuamos tendo uma música sem necessariamente ter uma música até um dia em que estávamos voltando meio bêbados de uma festa. Não me lembro bem exatamente o porque da festa, ainda que me lembre bem o porque de estarmos bêbados (acho que naquela época sempre estávamos meio bêbados, não? E não falo só de nós dois, falo de todo mundo por lá) e eu acabei comentando sobre isso, sobre a música. Foi o tipo da atitude sintomática e meio idiota que sempre começava comigo e causava nela o tipo de reação também sintomática e também idiota que iria me deixar constrangido e ir minando pouco a pouco qualquer resquício de romantismo que eu pudesse sentir. Ou então eu apenas fui me tornando menos idiota com o tempo, também é uma visão.

Estávamos caminhando pela beira de um lago, na saída do campus da faculdade, andando naquele ritmo que só as pessoas meio bêbadas e muito apaixonadas conseguem andar. Por causa do frio vínhamos abraçados, basicamente rindo de toda e qualquer coisa, como se caminhar pela beirada de um lago no inverno em plena madrugada fosse realmente um daqueles programas tão legais que tínhamos dado sorte de não ser necessário ligar antes fazendo reservas e não uma atitude perigosa/boba/desnecessária. Ela tinha cortado o cabelo curtinho, estava usando o meu casaco e estava apertando os olhos daquele jeito que hoje eu acho absurdamente irritante, porque faz com que ela pareça meio idiota, mas que na época era uma das grandes maravilhas do universo pra mim, junto com a batata frita e o Ipod. Eu olhava pra ela, via aquele sorriso e tudo que eu conseguia pensar é que eu estava de mãos dadas com a garota mais linda do mundo e o universo parecia um lugar quente, aconchegante e divertido. Se você me perguntasse naquele momento se eu gostaria que o mundo se mantivesse daquele jeito pra sempre, eu diria que sim, e as crianças africanas que possivelmente fossem todas pro inferno.

Por isso eu estava meio relutante em deixar a noite acabar e resolvi ficar sentado com ela na beira do lago, abraçados. (Abraços que por sinal são uma das coisas de que eu mais senti falta nesse tempo todo. Afinal, não sei se isso acontece com todo mundo, mas sexo casual e ficadas esporádicas raramente envolvem muitos abraços. Beijos? Sim. Sexo? Ok. Abraços? Muito pouco. Abraço é o tipo de manifestação física muito mais ligada a carinho do que a tesão, então acho que assim como uma garota de programa não beija os clientes eu não consigo realmente abraçar alguém de quem eu não goste. Call me a tenderness bitch). E aí eu cometi, como eu já disse, o erro de mencionar a música.

Em minha defesa posso dizer que eu estava alcoolizado, que eu era jovem, que eu estava apaixonado e que a música é realmente...bonitinha. “The Humpty Dumpty Love Song”, do Travis. Bonitinha, como eu disse. Talvez meio idiota, talvez não tão épica (nós não éramos um casal épico),talvez nada espetacular (nós não éramos um casal espetacular), mas era bonitinha (bem, na maior parte das vezes nós éramos um casal bonitinho). Também posso mencionar como atenuantes aquela lua, aquele lago, o fato de estarmos sentados na grama e a garoa que começava a cair. Ou talvez isso tudo sejam agravantes, a classificação é confusa nessas horas.

Eu olhei pra ela e disse que estava feliz de estar ali com ela. Ela me olhou, sorriu e disse que estava feliz de estar ali comigo. Vejam que nessa hora eu poderia tranquilamente ter parado e, sei lá, ter tentado passar a mão nela, alguma coisa do tipo, que teria realmente sido uma grande idéia, algo praticamente visionário naquele momento. Mas não, claro. Eu preferi mencionar a música.

“Qual música?”

E aí eu cantarolei. Eu poderia ter apenas dito que existia a música e ter dito pra ela procurar no Google, não sei. Seria outra idéia daquelas nível “inventei a fusão a frio” em termos de me poupar problemas, mas eu estava numa madrugada inspirada. Eu estava em chamas e não podia parar.

“All of the king's horses,and all of the king's men, couldn't pull my heart back together again. All of the physicians, and mathematicians too,failed to stop my heart from breaking in two. 'Cos all I need is youI just need you,yeah you got the glue,so I'm gonna give my heart to you.”

Tivemos um silêncio de alguns segundos que possivelmente provou todo o conceito einsteiniano de relatividade, porque o tempo e o espaço se deslocaram e aquilo demorou cerca de seis anos pra mim, já que eu estava a bordo da USS Acabei de Notar que fui Idiota, sentado na cadeira de capitão, em velocidade de dobra. E foi aí que ela falou.

“Isso foi...meio gay, não?”

“Humm...eu acho que...talvez...é...possivelmente um pouco...”

“É...e meio besta...assim, bem besta, não sei...”

“É...então...”

“Vamos pra casa?”

“Sim...hummm...vamos, vamos sim”

Por jluismith do blog Just Wrapped Up in Book

Publicado no Farrazine # 16 que você pode ver online aqui ou baixar aqui

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